ADI 5766 – ACESSO À JUSTIÇA
A Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5766 está com data para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, nessa quinta-feira, 14/10/2021. A ADI contempla a inconstitucionalidade das limitações legais advindas da lei 13.467/2017, quanto a garantia da gratuidade judiciária de dispositivos alterados e inseridos no texto da Consolidação das Leis do Trabalho.
Os dispositivos objeto de apreciação de inconstitucionalidade são o caput e §4º do Art. 790-B, §4º do Art. 791-A, e §2º do Art. 844, da CLT. As limitações legais à garantia do acesso à justiça se configuram na medida em que o texto legal, em vigência desde 2017, coloca, em determinadas situações, o trabalhador como responsável pelo pagamento de honorários periciais, de honorários advocatícios de sucumbência e de custas processuais.
Nesse sentido, a assunção dessa responsabilidade obstaculiza o acesso ao jurisdicionado pelos trabalhadores. O risco de ter que arcar com ônus advindos de uma condenação leva à expulsão da apreciação do judiciário de diversas situações-lide que poderiam ensejar direitos e conquistas da classe trabalhadora, para além de reparações individuais.
Importante salientar que tais restrições de acesso à justiça vão de encontro às garantias constitucionais previstas nos incisos XXXV e LXXIV do Art. 5º, as quais dispõem que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Essas mudanças legais foram justificadas na exposição de motivos do Projeto de Lei n. 6.787 (2017, p. 74), que deu ensejo à lei 13.467/2017, como forma de “desestimular a litigância descompromissada”. Porém, assim como a Procuradoria-Geral da República em sede de exordial menciona, é ilegítimo impor o caráter de sanção na condenação em custas de forma geral, ante a ausência de taxatividade e tipicidade da conduta.
Para situações de “litigância descompromissada” a CLT dispõe da Seção IV-A, que corresponde à “Seção da Responsabilidade por Dano Processual”, descrevendo as hipóteses de litigância de má-fé e as possíveis implicações para essa conduta.
Além disso, necessário também salientar a ausência de serviço regular de prestação de assistência jurídica pelo Estado a litigantes na seara trabalhista sem recursos financeiros. A estes, sempre restaram duas opções: a assistência jurídica gratuita pelos sindicatos e a contratação de advogados particulares. Logo, a garantia estatal expressa em Art. 5º da Constituição Federal, tal qual “LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, se consolidava apenas na isenção de custas e despesas processuais.
Todo esse contexto demonstra, portanto, como a gratuidade judiciária assume caráter de extrema importância social na Justiça do Trabalho. Por meio dela o trabalhador pobre tem seu acesso à justiça facilitado, viabilizando a efetividade de fundamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.
DISPOSITIVOS OBJETO DA ADI
Os dispositivos objeto de apreciação de inconstitucionalidade são os (i) caput da 790-B e (ii) §4º do Art. 790-B, (iii) art. 791-A §4º e (iv) Art. 844, §2º, da CLT.
Sobre o caput do Art. 790-B, antes da reforma trabalhista, o dispositivo assim estabelecia: “A responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, salvo se beneficiária de justiça gratuita”. O texto, portanto, protegia o trabalhador de eventual condenação ao pagamento de honorários periciais em situações de sucumbência.
Em movimento contrário aos princípios constitucionais e trabalhistas, o Art. 790-B foi alterado com as seguintes modificações (i): “A responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita”. Depreende-se da redação a explícita intenção do legislador de minimizar proteções legais conferidas ao trabalhador, na medida que não excetua, como antes, os beneficiários da justiça gratuita de possível sucumbência em honorários periciais, mas os inclui, sem sopesar a necessidade de atingir a igualdade material do trabalhador, munido de hipossuficiência, em litígios trabalhistas.
Analisando, em seguida, o §4º do Art. 790-B (ii), incluído com a lei 13.467/2017, também objeto de análise de sua inconstitucionalidade, tem-se: “Somente no caso em que o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro processo, a União responderá pelo encargo”.
Observa-se que essa redação desconsidera a situação econômica que determinou concessão da justiça gratuita e retira do beneficiário, para pagamento de custas e despesas processuais, recursos econômicos indispensáveis à própria subsistência, mormente se oriundos de processos trabalhistas, verbas dotadas de caráter alimentar. Igualmente, aqui, verifica-se violação à garantia constitucional do Estado como prestador de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Da mesma forma, dispõe o §4º do Art. 791-A (iii) da CLT, também incluído com a Lei 13.467/2017, o qual propõe como condicionante para suspensão de exigibilidade das despesas processuais a inexistência em juízo de créditos capazes de adimplir a despesa, ainda que vencido beneficiário da justiça, tal qual:
§ 4o Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.
A utilização de recursos de outros processos ou do mesmo para sucumbência de determinados pedidos, implica no esforço do trabalhador de obter êxito processual para salvaguardar o próprio acesso à prestação jurídica. Destinando verbas alimentares a pagamento de despesas processuais, demonstra-se a distância da efetivação da assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Enfim, importante também a análise do (iv) Art. 844 §2º da CLT, que insere novamente no dispositivo perda significativa aos trabalhadores. Pelo §2º é possível verificar a possibilidade de sujeição ao pagamento de custas processuais, ainda que beneficiários da justiça gratuita, em casos de arquivamento por ausência não justificada em audiência. A sujeição é, ainda, condição para uma segunda postulação posteriormente ao arquivamento, tal como:
Art. 844 - O não-comparecimento do reclamante à audiência importa o arquivamento da reclamação, e o não-comparecimento do reclamado importa revelia, além de confissão quanto à matéria de fato.
§ 1o Ocorrendo motivo relevante, poderá o juiz suspender o julgamento, designando nova audiência.
§ 2o Na hipótese de ausência do reclamante, este será condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do art. 789 desta Consolidação, ainda que beneficiário da justiça gratuita, salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável.
Assim, é objeto de inconstitucionalidade da ação o termo “ainda que beneficiário da justiça gratuita”, dado que pode trazer óbice àqueles desprovidos de recursos de ter seu direito apreciado pelo judiciário.
CONCLUSÕES
Analisando em termos gerais os quatro dispositivos objeto da ADI, verifica-se uma inclinação do legislador a ignorar a situação fática de hipossuficiência dos trabalhadores munidos de gratuidade judiciária. Tenta-se imputar a eles ônus tais quais às demais partes do processo, em tentativa de inibir litígios.
Contudo, o acesso a um direito não deve ser obstado pela condição financeira de alguém. As alterações advindas da reforma trabalhista, para além de inconstitucionais, são também contrárias ao próprio Código de Processo Civil, que dispõe, no art. 3º, “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”.
Humberto Theodoro Júnior (2021, p. 70), inclusive, ensina que o acesso à justiça não se restringe apenas a ter uma resposta em juízo, mas também a uma tutela efetiva e justa de direitos, tal como:
o acesso à justiça não se resume ao direito de ser ouvido em juízo e de obter uma resposta qualquer do órgão jurisdicional. Por acesso à Justiça hoje se compreende o direito a uma tutela efetiva e justa para todos os interesses dos particulares agasalhados pelo ordenamento jurídico
Nesse sentido, a gratuidade da prestação judiciária é apenas uma pequena parte da efetivação de direitos e acesso à justiça, em completa colisão também com o princípio da progressividade dos direitos, previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, substanciado pelo decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. A redação em vigência desde 2017, portanto, remete a um grande retrocesso. As garantias, ao invés de ampliadas, hoje correm risco de serem obstadas por aqueles não possuidores de recursos financeiros.
Esse movimento de colisão com os próprios direitos fundamentais demonstra questão levantada por Gabriela Neves Delgado e Maurício Godinho Delgado (2017, p. 360), que identificam “utilização do Direito como instrumento de segregação de segmentos sociais vulneráveis, hipossuficientes e tradicionalmente excluídos do campo institucionalizado do Direito”. O Direito, portanto, pode constituir ferramenta para a própria intensificação da desigualdade, o que demonstra a necessidade de se ater aos princípios e fundamentos constitucionais para a manutenção dos horizontes do Estado Democrático de Direito.
Entretanto, infelizmente, esse movimento aparentemente vem retomando suas forças, a partir de uma análise sintomática de mudanças legislativas que se traduzem em retrocesso de Direitos (DELGADO & DELGADO, 2017, p. 360).
A democratização do Poder Judiciário caminha junto com a ampliação do acesso à justiça. É imprescindível assegurar de forma ampla este direito aos que não possuem condições para arcar com eventuais custas e honorários. Obstar a inserção de litígios por condições financeiras significa não inserir globalmente problemáticas, desafios e situações de todas as classes sociais na apreciação dos tribunais. A postulação e o acesso à justiça são apenas os primeiros passos para a formação de teses, a construção de Direitos e o nascedouro de esperanças, as quais devem ser progressivamente aprimoradas.
Texto produzido por Ana Cecília de Oliveira Bitarães, com auxílio da Equipe do Observatório.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017. 2 ed. re, atual. e ampl. – São Paulo: LTr, 2018.
THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Vol. 1 (pp. 70-71). Forense. Edição do Kindle.
GALVÃO, Andréia; KREIN, José Dari; BIAVASCHI, Magda Barros; TEIXEIRA, Marilane Olveira (et all). Contribuição crítica à reforma trabalhista. Campinas. GT: Reforma Trabalhista CESIT/ IE/ UNICAMP. 2017
Sobre o tema, ainda, indicamos:
A primeira análise do Observatório sobre a ADI 5766, elaborada por Gabriel Trajano, com o apoio da equipe do Observatório - Disponível aqui: https://www.observatoriotrabalhistadostf.com/post/an%C3%A1lise-da-adi-5766
O capítulo 17 do Livro "O Supremo e A reforma trabalhista", redigido pelos professores Maria Cecília Máximo Teodoro e Murilo Carvalho e intitulado "A gratuidade na justiça do trabalho e a ADI 5766: o efeito backlash e a transmutação das custas em punição ao trabalhador" - Disponível aqui: https://www.editorafi.org/product-page/159-sidnei-machado . Você pode encontrar um resumo desse capítulo, aqui: https://www.observatoriotrabalhistadostf.com/post/cap%C3%ADtulo-17-a-gratuidade-na-justi%C3%A7a-do-trabalho-e-a-adi-5766
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