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Justificando: "STF: o proletariado como inimigo de classe"

Foto do escritor: OBSERVATÓRIO DA REFORMA NO STFOBSERVATÓRIO DA REFORMA NO STF

Texto por Reginaldo Melhado, publicado originalmente na Coluna Trabalho Além da Barbárie do Justificando, em 14 de outubro de 2021.


Disponível em: <https://www.justificando.com/2021/10/14/stf-o-proletariado-como-inimigo-de-classe/>. Acesso em: 20 out. 2021.



Leio em um post sobre recente decisão da Justiça Federal mandando a União pagar correção monetária e juros de 1% ao mês. Aí, mais uma vez, fico matutando sobre a sistemática destruição de direitos das classes trabalhadoras promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A coluna de hoje não tratará da validade da TR ou de critérios de correção monetária e juros dos créditos trabalhistas, mas dos patológicos desvios de personalidade da mais alta corte de Justiça deste nosso triste e alquebrado Brasil varonil (agora, aliás, na sua versão mais varonil, misógina, feminicida e homofóbica, sob a batuta do samango que nos mostrou os píncaros da depravação ética e humana). Afinal, o STF emite decisões vanguardeiras e audaciosas ao abordar certos capítulos dos direitos humanos, mas noutros deles choca o mundo com julgamentos de liquidificador, tomando a classe trabalhadora como inimiga. Como nesse exemplo da correção monetária e dos juros nas demandas judiciais por créditos trabalhistas.

O estimado leitor e a prezada leitora devem se lembrar bem dessa história. Em abril deste ano, a Suprema Corte tupiniquim julgou a ADC 58, envolvendo a interpretação constitucional do art. 879, § 7º, e do art. 899, § 4º, ambos da CLT, e do § 1°do art. 39 da Lei 8.177/91. Estabeleceu que à atualização dos créditos trabalhistas decorrentes de condenação judicial, na fase extrajudicial, será tomado como indexador o IPCA-E. Já na fase judicial, diz o pretório excelso, a atualização dos débitos judiciais deve ser feita pela taxa Selic. E então é dado o pulo do gato: como a aplicação dessa taxa de juros (atente bem a senhora leitora: taxa de juros travestida de critério de correção monetária) não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária, cumulação que representaria bis in idem, suas excelências guilhotinam a própria taxa de juros moratórios de 1% ao mês, literalmente prevista no reluzente § 1°do art. 39 da nossa vetusta e a essa altura sôfrega Lei 8.177/1991. É isto mesmo o que consta da ementa da decisão escrevinhada pelo Min. Moraes, relator da façanha: a taxa Selic “não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária, cumulação que representaria bis in idem”, motivo pelo qual foi extirpada pelos homens e mulheres da capa preta não qualquer outro indexador monetário mas… a própria taxa de juros prevista na lei. O crédito trabalhista cobrado judicialmente vira pó.

Seria mero e dramático episódio de acidente de lógica formal? Sabe? Aquele negócio de premissas e conclusões? Não, cuidadoso leitor, não é caso de incoerência ou inconsistência de raciocínio, mas apenas mais um ponto dentro da curva de outra enfermidade mais grave, a pathoneoliberalite extensiva.

A doença é grave e marca desatinado transtorno de personalidade. O corpus pequeno-burguês do STF, transtornado, descobre-se assombrado e tomado pelo amálgama do espírito de banqueiros, latifundiários, industriais e outras almas incorporadoras do grande capital. O pretório volta-se então contra seus próprios entes mais caros, a Constituição da República, os direitos fundamentais e os princípios gerais dos alfarrábios jurídicos com trânsito em julgado na história universal do direito. Chutando pelos ares os silogismos mais comezinhos, obsessivo e compulsivo, o tribunal despe-se de sua versão doutor Jekyll das decisões ambientalistas e identitárias, por exemplo, e mostra sua face mais aterrorizante de mister Hyde.

O ministro Luís Roberto Barroso é o maior exemplo dessa bipolaridade. Votou pela descriminalização do porte de maconha para consumo próprio, colocando as hostes punitivistas em alerta. Também declarou seu voto a favor da descriminalização do aborto até três meses de gestação. Não obstante, é um dos mais empedernidos operadores da motosserra dos direitos dos trabalhadores, não escondendo seus afagos ao grande capital em decisões e declarações públicas. Como em sua maior pérola, emitida no Reino Unido, enquanto a reforma trabalhista era aprovada por aqui. Segundo Barroso, o Brasil teria 98% das ações trabalhistas do planeta, mesmo limitando-se sua população a modestos 3% dos terráqueos. Fosse a proposição verdadeira – e ela não o é, sabe-se às escâncaras – e caberia pensar sobre as causas de tamanha litigiosidade e não apenas sobre o remédio da via judicial (de resto, notoriamente ineficaz no Brasil). Mas a afirmação barrosiana é escalafobética e mendaz, e não combina com a empáfia e os ternos cortados com estilo de erudição e rigor acadêmico do ministro.

Diversas foram as decisões “progressistas” do STF, algumas até corajosas, no sentido de reconhecer a prevalência dos direitos humanos e dos princípios constitucionais até mesmo em face da literalidade de regras da lei e da própria Constituição. Foi o caso, por exemplo, do reconhecimento da relação homoafetiva enquanto união estável, como entidade familiar, para efeito da proteção do Estado, a despeito de o § 3º do art. 226 da Carta fazer referência ao vínculo “entre o homem e a mulher”. Na mesma linha, tempos depois, o Supremo reconheceu a omissão inconstitucional do parlamento, por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26). Conquanto tenha recebido o aplauso de parte dos juristas, da sociedade e especialmente da comunidade LGBTQIA+, a decisão foi muito polêmica, pois o julgamento importou o reconhecimento de tipo penal por decisão judicial, desprovida da definição legal, conquanto se trate de atos atentatórios a direitos fundamentais. Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.

Também foi o caso da decisão do tribunal considerando ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito” (Súmula Vinculante 25), a despeito de o inciso LXVII do art. 5º da Constituição admitir o encarceramento, literalmente, nessa hipótese. Aqui, reconheceu-se o caráter supraconstitucional das normas de convenções e tratados internacionais disciplinando a proteção dos direitos humanos. Com um detalhe: a adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica deu-se em 1992, anteriormente à Emenda 54 (de 2004), que inseriu na Constituição o § 3º do art. 5º, estabelecendo que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. O contorcionismo exegético da Corte, tanto no caso da união homoafetiva como no da prisão do depositário infiel, fundou-se na prevalência dos direitos humanos.

Na mesma linha, o STF julgou a ADPF 54, no caso da gestação de feto anencéfalo, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez, na hipótese, seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal. Portanto, afastou a tipicidade penal da conduta.

A validação do sistema de cotas raciais em universidades, o caso dos anúncios comerciais de venda de grandes nacos da Floresta Amazônica por meio do Facebook Marketplace, o inquérito das fake news e inúmeros outros episódios poderiam ser aqui citados. Mas, estranhamente, esse mesmo tribunal subverte os direitos fundamentais ao tratar de temas diretamente ligados às relações de classe e aos interesses diretos do capital. Aí ocorre uma guinada e a hermenêutica constitucional é colocada ao avesso: aparecem os sintomas da pathoneoliberalite extensiva.

Grijalbo Fernandes Coutinho estudou essa patologia com minudência e seriedade no seu “Justiça Política do Capital: a desconstrução do direito do trabalho por meio de decisões judiciais”, livro lançado recentemente pela Tirant. Nele, o autor analisa grandes blocos temáticos envolvendo a matéria, mostrando como o Supremo vem executando uma espécie de justiciamento de classe, pelo capital, na desconstrução de direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores. Para ele, o STF leva a cabo o que Otto Kirchheimer denomina justiça política, usando o processo judicial para fins ideológicos, desvirtuando e manipulando a constituição, aliando-se com o capital e grandes grupos de comunicação e, nesse sentido, renunciando ao papel contramajoritário do juiz para firmar-se como corte populista e midiática, numa espécie de grande reality show político-jurídico.

Podemos apenas referir algumas das decisões do STF caracterizadoras dessa prática que toma o proletariado como inimigo, e a zelosa leitora já entenderá a que o autor se refere.

A terceirização na atividade-fim foi escancarada, dinamitando-se os alicerces do velho direito do trabalho. Reconheceu-se a prevalência do negociado sobre o legislado, e o princípio da norma mais favorável foi para o buraco. A chocante redução do prazo prescricional do FGTS desarmou a o dispositivo constitucional que faculta à lei a criação de outros direitos (de novo, um golpe contra o princípio da norma mais benéfica). Implementou-se sistemático e empedernido esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho (complementação de aposentadoria, servidores públicos temporários, concursos públicos na administração indireta, autorização para o trabalho infantil artístico, relações de trabalho, cobrança de honorários), em julgados inconsistentes e abertamente contrários à arquitetura conceitual do art. 114 da Constituição. Nas decisões sobre grupo econômico e sucessão trabalhista na recuperação judicial e na falência, mais uma paulada nos credores trabalhistas, em benefício de banqueiros e quejandos. Trabalhadores de organismos internacionais dançaram no direito de acesso à Justiça pelas mãos da imunidade de jurisdição. A redução do adicional de insalubridade teria sido risível – pois contraria uma súmula vinculante da própria casa – não fosse trágica para a saúde das pessoas e mais um direito fundamental jogado no lixo. A limitação do direito de greve dos servidores públicos finalmente fez funcionar o olvidado mandado de injunção do art. 5º da Constituição, mas não para assegurar o exercício de direitos e liberdades constitucionais, mas para coarctá-los. A jornada de 12×36, o recálculo do benefício previdenciário com a desaposentação, a redução salarial e a suspensão do contrato de trabalho por acordo individual na pandemia da Covid-19: enfim, enfadado leitor, a lista é longa e não caberia nesta apertada coluna.

Coloco aqui apenas a síntese de um resumo do livro de Grijalbo F. Coutinho. A sanha destruidora dos direitos das classes trabalhadoras parece inesgotável na excelsa Corte. Nela, quando estão em jogo os interesses de classe do capital, a interpretação constitucional é posta de cabeça para baixo: em lugar da preeminência dos direitos humanos e dos princípios gerais, a lenta construção civilizatória é rasgada impiedosamente. O filósofo do século 19 estava certo: o judiciário é o mais conservador dos poderes da república e o mais aferrado à manutenção do status quo da dominação de classes e da expropriação do trabalho. Pior que uma corte assumidamente conservadora, caríssima leitora, é um tribunal de sapatênis e blazer moderninho, posando de progressista, enquanto faz o trabalho sujo da burguesia. Desmoraliza-se na própria incoerência.

Reginaldo Melhado é membro da Associação Juízes para a Democracia, doutor em Direito e professor da Universidade Estadual de Londrina.

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