A Ação Declaratória de Constitucionalidade foi ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF, entidade patronal, tendo por objetivo o reconhecimento da constitucionalidade dos parágrafos 3º e 4º do art. 790 da CLT, alterados pela reforma trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467/2017).
A alegação constante na peça inicial da Ação Constitucional é a de que tem havido insegurança jurídica diante da existência de interpretações diversas no âmbito da Justiça do Trabalho acerca dos mencionados dispositivos, que dispõem:
§ 3o É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 4o O benefício da justiça gratuita será concedido à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Aponta a Confederação patronal autora que enquanto há julgados que entendem que, a partir da edição da Lei nº 13.467/2017, o benefício da justiça gratuita só é acessível àqueles que recebem salário igual ou inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social e que comprovem a insuficiência de recursos; existem precedentes no âmbito da justiça do trabalho, sobretudo pautados na Súmula 463, I do TST e no art. 99, § 3º do CPC, que sustentam uma interpretação ampliativa do dispositivo no sentido de afirmar que a concessão do benefício àqueles que recebem salário igual ou inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social teriam automaticamente o direito à justiça gratuita, facultando-se, ainda, àqueles que percebem remuneração superior a esses limites, caso comprovem a insuficiência de recursos, acessarem o benefício da justiça gratuita, que somente será indeferida se for produzida prova em contrário pela parte adversa.
A divergência que mobiliza o ajuizamento da ADC, portanto, é aquela estabelecida entre:
a) os julgadores que aplicam literalmente o texto da reforma trabalhista, que intentou desestimular a litigância trabalhista, ainda que às custas da garantia constitucional do acesso à justiça para os trabalhadores, validando o sentido restritivo contido na Lei nº 13.467/2017;
b) aqueles que, considerando as balizas constitucionais e o caráter sistêmico da ordem jurídica, promovem interpretação ampliativa, que evita o discrímen ilegítimo entre trabalhadores e demais cidadãos, na medida em que não admitem que o CPC trate o tema de uma forma e a CLT o faça de modo mais gravoso, especificamente para aqueles que reivindicam direitos decorrentes das relações de trabalho, bem como preservam a construção jurisprudencial do TST ao interpretar a legislação trabalhista de modo consentâneo com o art. 5º, LXXIV, da CF/88, admitindo a concessão do benefício aos litigantes em face da mera declaração de hipossuficiência, admitida como verdadeira se não houve prova em contrário.
A Confederação autora mobiliza a ação declaratória de constitucionalidade objetivando assentar, no âmbito da Corte Constitucional, a interpretação literal dos dispositivos, excluindo do benefício da justiça gratuita todos aqueles que percebem remuneração superior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social - valor que, colocado em números e considerado o poder de compra da moeda brasileira atualmente, é baixo: R$ 2.834,88 - e, ainda, aqueles que, inseridos nessa janela remuneratória, não consigam provar a insuficiência de recursos para o pagamento das custas.
Assim, pretende a CONSIF promover interpretação restritiva da garantia do acesso à justiça, desconstruindo a interpretação sistemática conferida por alguns magistrados da Justiça do Trabalho ao dispositivo e, assim, criando, no âmbito da Justiça do Trabalho, um espaço jurisdicional de maior rigor quanto à concessão da justiça gratuita em relação ao que ocorre na justiça comum.
A questão das normas processuais inseridas pela Reforma Trabalhista na CLT recentemente foi tratada na ADI 5766, que reputou inconstitucionais os arts. 790-B, caput, art. 790-B, § 4º, e 791-A §4º. Na oportunidade, a discussão se referia ao encargo processual dos honorários periciais e à responsabilidade imposta aos beneficiários da justiça gratuita por essa parcela. É importante relembrar que a censura da Corte Constitucional aos referidos dispositivos, que fazem parte de um conjunto de regras inseridas pela reforma trabalhista supostamente para reduzir a litigância trabalhista, se deu em face da restrição indevida à garantia constitucional do acesso à justiça (análise do Observatório disponível aqui).
Portanto, é também sob essa chave interpretativa que, por coerência, cabe ao STF considerar os questionamentos contidos na ADC 80, que foi distribuída para a relatoria do Ministro Edson Fachin.
Relações entre as custas judiciais, democratização de direitos trabalhistas e índice de Desenvolvimento Humano de uma região
A conjuntura da precarização do trabalho no Brasil é fatídica. Há anos o país carrega o título de campeão de acidentes de trabalho, vitimando, só em 2021, mais de 420 mil trabalhadores (ACIDENTES, 2022). A Pnad Contínua ainda nos mostra que a quantidade de trabalhadores sem carteira assinada superou aqueles abrangidos pela formalidade, afastando, assim, cada vez mais de proteções no âmbito do trabalho (SPBANCARIOS, 2022). O Brasil carrega, também, uma cultura de exploração, vinculada à abolição tardia da escravatura e às diversas continuidades do racismo que constituem a nossa sociedade desigual (THEODORO, 2022).
Nesse cenário, o descumprimento sistemático dos direitos trabalhistas pelos empregadores é um dado identificado por diversos pesquisadores (FILGUEIRAS, 2012; CARDOSO & LAGE, 2007). Dados do CNJ revelam que no período entre 2016 e 2018 (portanto, antes e após a reforma) a imensa maioria dos pedidos formulados nas reclamações trabalhistas ajuizadas na Justiça do Trabalho se referia a verbas rescisórias, a evidenciar não um padrão de litigância abusiva por parte dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, mas sim uma sistemática conduta patronal de descumprir obrigações elementares decorrentes do contrato de trabalho (DUTRA, 2019).
Em um contexto como o descrito, é essencial que se garanta o acesso à justiça pela pessoa trabalhadora, o que seria diretamente obstaculizado por uma interpretação literal dos dispositivos objeto da ADI em questão.
Além do dado concreto concernente à queda abrupta do número de reclamações trabalhistas ajuizadas após a Reforma Trabalhista, o que revela que a introdução do referido conjunto de dispositivos efetivamente inibiu a busca por direitos (FILGUEIRAS, 2019), é interessante observar que, em 2009, em parecer emitido pelo Conselho Nacional de Justiça, observou-se que regiões com custas judiciais estaduais mais baixas tinham um índice de desenvolvimento humano maior. Nesse sentido, abre-se espaço para grandes reflexões quando o assunto é assistência judiciária gratuita.
É de extrema importância que os dispositivos objeto da ação sejam analisados pensando no contexto brasileiro de desvalorização dos direitos dos trabalhadores.
Como mencionado, as custas judiciais podem implicar, inclusive, no Índice de Desenvolvimento Humano de uma determinada região. É o que foi apurado em parecer n. 0005012-10.2009.2.00.0000 do Conselho Nacional de Justiça, em 2009:
Situações paradoxais e preocupantes foram reveladas quando observados no cotejo entre os valores de custas processuais e os indicadores socioeconômicos relevantes como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), PIB (Produto Interno Bruto) per capita e percentual de pobres. Aqui se notou que as unidades da federação mais ricas e desenvolvidas praticam valores de custas mais baixos enquanto aqueles com menor riqueza impõem custas e taxas mais altas.
Nesse sentido, acessar a justiça pode ter implicações em toda a esfera de democratização dos direitos e promoção do trabalho digno, principalmente em relações de trabalho, que por si só carregam a luta de classes e a hipossuficiência do trabalhador.
De forma teórica, Boaventura Souza Santos (2010, p. 49), nos mostra “as vagas no movimento de acesso à justiça”. Essas vagas correspondem às percepções desses acessos pela sociedade ao longo do tempo, tais como:
Com início em meados da década de 1960, a primeira vaga é caracterizada pela defesa e promoção de mecanismos de apoio judiciário aos cidadãos carenciados. Assim, o apoio judiciário deixa de ser entendido como filantropia e passa a ser incluído como medida de combate à pobreza nos programas estatais. As mudanças introduzidas com a segunda vaga procuram sobretudo encorajar a defesa dos interesses coletivos e difusos em juízo, uma vez que a universalização do acesso dos particulares através de mecanismos de apoio judiciário não é por si só uma garantia de defesa de interesses coletivos, em especial por parte dos grupos sociais mais vulneráveis. Na terceira vaga, o movimento de acesso à justiça procura expandir a concepção clássica de resolução judicial de litígios desenvolvendo um conceito amplo de justiça em que os tribunais fazem parte de um conjunto integrado de meios de resolução de conflitos, o que inclui o que se convencionou chamar de ADR (resolução alternativa de litígios).
Portanto, acessar direitos pelo judiciário não é um mecanismo de mera filantropia, mas veículo de acesso a direitos individuais com condão de universalizá-los. Os tribunais carregam consigo importante papel para se promover e, assim, democratizar o trabalho digno.
Vale ressaltar que a quarta turma do Superior Tribunal de Justiça, em REsp 1899342, decidiu que, para Microempreendedores Individuais e a Empresários Individuais, a declaração de insuficiência financeira é o bastante para concessão do benefício de assistência judiciária gratuita. Nesse sentido, é importante que a margem de proteção desse direito tenha validade também para pessoas naturais, sendo um descompasso essa proteção para apenas pessoas jurídicas nas formas citadas.
Universalizar o acesso à justiça, principalmente aos litigantes da Justiça do Trabalho, é uma medida para se universalizar direitos, inclusive ampliando a precaução das empresas e empregadores para estímulo a um meio ambiente de trabalho seguro.Um ambiente de trabalho seguro, com direitos assegurados, não traz benefícios apenas na esfera individual. O faz no âmbito da ordem pública, reduzindo custos acidentários previdenciários para o Estado; na saúde pública, minimizando doenças ocupacionais; e na própria economia, na medida em que a redução do nível de adoecimento e acidentalidade repercute positivamente na qualificação e permanência dos trabalhadores no ambiente laboral, produzindo efeitos na produção, visto que a melhoria da remuneração e das condições de trabalho dignas estimulam o consumo e a própria produção do trabalhador desempenhando suas funções.
Desse modo, custas, acesso à Justiça, benefício de assistência judiciária gratuita podem ser, ainda, palavras-chaves para, como demonstrado, ampliação do índice de desenvolvimento humano e universalização de direitos, trazendo benefícios à tão cara progressão dos direitos fundamentais.
Por Ana Cecília Bitarães e Renata Dutra, com o apoio da equipe do Observatório.
REFERÊNCIAS
ACIDENTES de trabalho vitimaram mais de 420 mil pessoas em 2021. Folha Vitória, 27 de abril de 2022. Disponível em: <https://www.folhavitoria.com.br/geral/noticia/04/2022/acidentes-de-trabalho-vitimaram-mais-de-420-mil-pessoas-em-2021>. Acesso: 01º de maio de 2022.
BRASIL. Procedimento de Controle Administrativo CNJ n. 0005012- 10.2009.2.00.0000. Auto Circunstanciado de Inspeção Preventiva. Estabelecimento de Parâmetros na cobrança de custas e despesas processuais. Nota Técnica elaborada pelo DPJ. Brasília, DPJ, 2009. Disponível em: <https://cnj.jus.br/InfojurisI2/downloadDocumento.seam;jsessionid=91099E4AD0F40118994AACD258D5A249?fileName=50121020092000000___VOTO.pdf&numProcesso=0005012-10.2009.2.00.0000&numSessao=114%C2%AA+Sess%C3%A3o+Ordin%C3%A1ria&idJurisprudencia=42365&decisao=false> Acesso: 01º de maio de 2022.
CARDOSO, Adalberto M.; LAGE, Telma. As normas e os fatos. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
DUTRA, Renata Q. A regulação pública do trabalho e a reforma trabalhista: impactos e reações do Poder Judiciário à Lei nº 13.467/2017. In: José Dari Krein; Roberto Véras de Oliveira; Vitor Araújo Filgueiras. (Org.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. 1ed.Campinas, SP: Curt Nimuendajú, 2019, v. 1, p. 155-177.
FILGUEIRAS, Vitor. As promessas da Reforma Trabalhista: combate ao desemprego e redução da informalidade. In: José Dari Krein; Roberto Véras de Oliveira; Vitor Araújo Filgueiras. (Org.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. 1ed.Campinas: Curt Nimuendajú, 2019.
_________________. Estado e direito do trabalho no Brasil: regulação do emprego entre 1988 e 2008. (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Orientadora: Graça Druck. 2012.
NO BRASIL de Bolsonaro, empregos sem direitos já ultrapassam os com carteira assinada. Sindicato dos Bancários. São Paulo, 27 de abril de 2022. Disponível em: <https://spbancarios.com.br/04/2022/no-brasil-de-bolsonaro-empregos-sem-direitos-ja-ultrapassam-os-com-carteira-assinada>
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. 3ª.ed. - São Paulo: Cortez, 2011.
THEODORO, Mario. A sociedade desigual: racismo e branquitude no Brasil. São Paulo: Zahar, 2022.
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